O Substack não oferece mecanismo de busca, então as notas somem e vão pras profundezas.
Daí vou juntar um punhado, provavelmente por mês.
Notes de maio de 2023
De 15 a XX de maio.
Admiro ao ponto da inveja quem divulga e recomenda livros e autores.
A admiração é óbvia. Boas recomendações aumentam o repertório de leituras.
Já minha dificuldade em recomendar explica a inveja. Gosto de poucos autores e os livros que mais admiro não aparecem atrair muitos leitores.
Vou tentar mudar isso. Quem sabe recomendar livros incríveis, mas não são do meu gosto. E nem por isso são chatos.
Antes, claro, vou recomendar livros de que gosto.
(A última nota estava parada há dias, talvez mais de uma semana. Não tinha chegado a uma lista de cinco livros para recomendar. Apelarei para a modéstia, vou começar por dois títulos.)
Reflections in a Golden Eye (1941), da Carson McCullers.
Virou filme do John Huston em 67, com roteiro de Gladys Hill, e Brando e Elizabeth Taylor no elenco, mas no Brasil foi batizado de O pecado de todos nós. O Brasil vivia uma fase de muito pecado no cinema, talvez o regime militar explique. Persona, de 66, recebeu por aqui o título Quando duas mulheres pecam.
O falecido D.G. Myers, do saudoso A Commonplace Blog, reparou numa postagem em como McCullers havia perdido o crédito literário em tão pouco tempo.
Só isso já justifica recomendar também a noveleta The Ballad of the Sad Café (1951), e de repente alguns dos contos publicados nesse volume.
E também The Member of the Wedding (1946). Esse romance foi adaptado para o teatro, que virou filme em 52 e no Brasil foi chamado de Cruel Desengano. Revi o filme algumas vezes.
E pra quem prefere blog a livro, os arquivos do Myers seguem no ar: dgmyers.blogspot.com
As frases de abertura de Carson McCullers costumam ser um bom convite. Deixei de fora Clock Without Hands (1961), que nunca terminei.
In the town there were two mutes, and they were always together.” — The heart is a lonely hunter (1940).
It happened that green and crazy summer when Frankie was twelve years old.” — The member of the wedding (1946). E o resto também é bom: “This was the summer when for a long time she had not been a member. She belonged to no club and was a member of nothing in the world. Frankie had become an unjoined person and hung around in doorways, and she was afraid.”
An Army Post in peacetime is a dull place. Things happen, but then they happen over and over again. — Reflections in a Golden Eye (1941).
The Town itself is dreary; — The ballad of the sad café (1951). E o resto: not much is there except the cotton mill, the two-room houses where the workers live, a few peach trees, a church with two colored windows, and a miserable main street only a hundred yards long.
Se os homens soubessem da mulherada como eles estão mal na fita, nem saíam de casa.
Noutra rede, num perfil restrito, pessoa que admiro lembrou da parte que tanta gente que reconhece a grandeza e a importância dos diálogos de Platão esquece de comentar: de como esses diálogos são chatos.
A noção de que os diálogos platônicos são paradidáticos, não sendo nem os livros didáticos ou a cartilha da Academia, mas a Coleção Vaga-Lume, traz certa graça pra vida.
O humor vem mesmo quando a gente repara na admiração de milênios e meio. Para além da bibliofilia, é como descobrir e cultuar a lancheira de Sidarta, uma touca de banho do profeta, um prego da cruz.
Godot não veio. Mas mandou recado:
H: “We’re just normal men.”
L: “What do you mean, normal men?”
H: “We’re just innocent men.”
Calderón também não veio. Mas mandou Tom Waits:
And it's such a sad old feeling, all the fields are soft and green
And it's memories that I'm stealing, but you're innocent when you dream
Estudo, ocupação (muitas vezes sobreposto ao trabalho ou só uma parte do trabalho) e hobby seguem uma lógica de ‘last man standing’ que logo é confundida com ‘gatekeeping’.
Hobbies tendem a ser menosprezados, ainda mais pela turma da ostentação conservadora (que carimba o imprimatur de qual atividade é bela et moral ao homem de bem). Mas os hobbies nos revelam mais rapidamente essa dinâmica.
Por exemplo, todo veterano (o ‘last man standing’ local) é facilmente confundido como gatekeeper. E essa confusão é explorada e às vezes criada e incentivada pelo departamento de marketing da empresa que quer ‘renovar o público’ (ou outro jargão safado).
E com o tempo as mesmas confusões deliberadas e as mesmas táticas acontecem com o estudo e a ocupação (e também o trabalho).
Ai de mim ser Niemöller de jogador de Magic, colecionador de soldadinho de chumbo, historiador de videogame ou bebedor de cerveja belga, mas ninguém nunca se salvou pela própria estupidez, por se portar como avestruz de desenho animado.
“Deus me livre da sprezzatura de cu dos meus contemporâneos.” - DGR, ainda que pareça Petrarca
“Há contos incríveis e maravilhosos do Kafka, mas não para nós.” - Tobermory
Sambava de medo a catedral de Notre-Dame de Paris.
A frase me veio ontem depois da meia-noite e logo virou um parágrafo e outros quatro parágrafos se juntaram ao primeiro.
Como abertura de romance, parece redonda, perfeita.
Humor ou pelo menos a graça e o riso vêm de uma súbita cognição que expande o nosso repertório de expectativas.
E é por isso que há graça até quando nossas expectativas não são rompidas, a surpresa da não-surpresa.
Por isso me parece uma reação errada argumentar que “todo humor é ofensivo” com a patota que aparece com a ideia de que humor ofende.
Parece que estão caindo no truque do enquadramento (framing), e deixando de lado dois pontos essenciais.
O primeiro ponto é que humor e ofensa existem, mas a discussão propõe que a cognição e portanto a inteligência são ofensivas. E isso esconde o rastro do que está em jogo: grupos de poder e o poder das instituições que querem nos dizer o que pensar e como pensar.
No passado a pretensão de controlar e moldar o outro se concentrava na figura do ditador, do tirano. Agora essa pretensão vêm de comitê, com uma ponte dentro das instituições e outra na representação popular. Os que gritam por justiça e os que foram apontados para oferecer a justiça.
O segundo ponto, mais pessoal, é que quem discute se o humor ofende não se preocupa com a possibilidade de ser ofensiva justamente a ideia de aproximar humor e ofensa. Eu mesmo fico ofendido.
É um grande “pau no seu cu, Marcelo, atifudê”. Pode ser posição válida e defensável, mas segue sendo ofensiva.
Um terceiro ponto, menos óbvio, e talvez não tão essencial, pelo menos se desconsiderarmos justamente o que é o humor (cognição, inteligência) é essa discussão ser tratada com argumentações muito séries e pouco humorísticas.
É como se até os defensores do humor o tratassem como um acréscimo, um supérfluo, uma comodidade burguesa e não um fundamento civilizacional. Não estou me referindo a Jesus fazer trocadilhos infames com Pedro e pedra. Mas ao fato que velórios pedem piadas.
Dá para imaginar os velórios com um cartaz na entrada das salas:
Por ordem do STF está proibido dar risada neste recinto.
Pedimos a todos que não peidem em volta do caixão.
Sugerimos aos cadeirantes, às gestantes do sétimo mês em diante, a gente muito acima do peso, anões, corcundas, manetas, zarolhos e pessoas de qualquer gênero que se comportam como a bichinha das piadas do Costinha, por gentileza, ocupem as fileiras do fundo.
Haverá uma sessão especial só para vocês terem contato mais próximo com o morto e seus familiares. Poderão participar portadores de distúrbios físicos e mentais, com a presença de cãos-guia e acompanhantes. E de acordo com a portaria 23-69-171, gaúcho também pode.
Em algum momento o ‘confio no autor que confia no leitor’ passou a ser tomado por ‘você gosta é de autor que enfia referências’.
De repente ‘referência’ é a pista.
Referência sugere mais identificação de conteúdos (eu sei do que o autor está falando) que percepção de estruturas (eu percebo os efeitos que o texto causa e como o escritor constrói esses efeitos).
E isso deixa qualquer um pensando que estamos num momento em que o texto se tornou opaco, o autor virou o potencial mágico que esconde do público a prestidigitação. Com o detalhe que não está escondendo.
Não ajuda a quantidade de resenhas e críticas que ficam na sinopse e interpretação.
Money, do Amis, inspirou um conto que nunca publiquei.
Achei desnecessário.
Um tipo de exercício muito didático, reduzir um romance a um conto, e talvez o tipo de comentário ou crítica que Amis apreciaria.
Falta à literatura recente uma versão da frase do Wally Wood:
"Never draw anything you can copy, never copy anything you can trace, never trace anything you can cut out and paste up."
Algo que pai e filho Amis tinham, uma dicção distinta do grosso dos autores celebrados hoje, e que só consigo apreender depois de fuçar a prosa contemporânea.
Os Amis não parecem perder tempo com descrições que são comentários disfarçados, que é um tique generalizado, a do narrador, ainda mais em primeira pessoa, que repara em marcas de cadeiras, roupas, canetas e óculos e não faz nada com a descrição a não ser piadas internas, portanto, comentários.
A palavra que procuro talvez seja incisivo, eles eram incisivos, cada um a sua maneira. Mas incisivo virou código para rudeza, frieza, despreocupação ou até vontade de chocar. Amis filho até tinha isso, mas o incisivo em questão é a capacidade de adentrar a cena, o ambiente, o personagem, a questão, não fazer listinhas de detalhes que fazem o narrador parecer meio fora de foco, meio desinteressado na própria história.
Há livros que dá vontade de mandar narrador e autor ir tomar café, uma ducha, dar a proverbial meia-hora de cu, tirar um cochilo e voltarem quando estiverem melhor.
Para quem consegue ser a leitura, imagino que um dos mistérios do livro é se até o final o narrador melhorou, saiu da ressaca, os remedinhos pra cabeça começaram a fazer efeito...
Casal, ele com pouco tempo de vida e ela com pouco interesse em sobreviver como viúva, decide montar um dicionário de curras literários, um imenso catálogo com o título de obras, o capítulo onde ocorre a violação e a página da edição consultada.
Enquanto o casal descobre os assistentes de IA e tenta reajustar o projeto, uma juíza força a mulher a ir atrás da sobrinha, filha de uma irmã distante.
A sobrinha decidiu largar a faculdade e se internar no circuito restante de abrigos e casas para pessoas especiais ou com transtornos psiquiátricos severos.
A sobrinha e o namorado dela, que também decidiu se recolher em instituições, esperam sobreviver ao apocalipse iminente, previsto pelas polêmicas intelectuais publicadas nos cadernos culturais dos grandes jornais restantes.
Viver como paciente ou interno parece mais digno que assumir responsabilidades numa sociedade que perdeu a razão e o senso de moralidade. A sobrinha trava uma batalha jurídica para ser considerada incapaz, o que leva a juíza ao catch 22.
A novela, talvez romance, lembra Murakami, mas teria o título de Houelle.
Não tenho raiva de plot. Sinto certa aversão a plots expostos, em geral algo desnecessário. Prefiro Howard Hawks.
Porque assim que você percebe que os personagens precisam ir do ponto A ao ponto B e elaborar o grande assalto, perco o interesse. Prefiro não saber o que vai acontecer em seguida.
Minha irmã mais nova achou Kill Bill lixo por causa da divisão do primeiro volume em capítulos. Entendo o sentimento, compartilho do tédio.
Há algo na estruturação da narrativa em fragmentos que pede recortes drásticos, do contrário vem o tédio e impressão de que o autor não domina a técnica.
Por isso narrativas estruturadas em torno de diários tendem à chatice. O escritor precisa ser experiente, porque ele deve cortar mais do que cabe nos quadradinhos de cada anotação do diário.
O diário de Laura Palmer funciona. Um pilha de romances nacionais com diários, depoimentos e outras estruturas de fragmentação, como conversas de chat e troca de e-mails, e até investigações, falham grandemente.
Grades, escaninhos, dias da semana, toda estrutura leva à previsibilidade, pedem que o autor não perca tempo, não deixe o leitor antecipar os personagens.
A resistência de tantos romancistas contemporâneos em oferecer profundidade aos personagens, criam livros muito parecidos, em que os personagens parecem zé-manés indistintos.
“Tom King was about five years old when at Marvel Comics the Kingpin put Matt Murdock through the ringer during Frank Miller's run on Daredevil, creating the template for "a great story is when you break a hero down as much as possible". Or at least that was the takeaway for less talented writers than Frank Miller.” - Scipio
Segue sendo um dos grandes blogs:
Gente demais na casa dos 30 ou quase fazendo curso pra virar comunista, tentando puxar uma bibliografia válida da massa de publicações e autores marxistas, obras de Marx ainda incluídas.
Divertido ser de outra geração. Sou 18 anos mais velho. E de uma geração que não tinha futuro. E continua não tendo. E logo mais não terá nem passado.
Viramos todos gregos, não no sentido de pirobos, sodomitas & pederastas, mas no sentido de 'extintos enquanto ainda vivos', porque a política se tornou pro cidadão algo esvaziada da prática, e viva apenas em teorias, assuntos de livro, museu, História, docudrama, podcast.
O liceu e a academia lá dos gregos sempre sugere, para nós que lemos em retrospecto, que já estavam ‘mortos em vida’ no tempo de Platão e do velho Ari.
Já tinham feito um back-up. E agora estudavam a ‘letra morta’.
Mais de década atrás, amiga minha me pediu sugestões de leitura para começar a ler histórias em quadrinhos.
Nunca cheguei a fazer a lista.
Não consegui passar de Calvin e Haroldo.
Acho que se deve começar por tiras e só depois ir para a página, como a transição que Will Eisner fez, das tiras seriadas para a história em 7 páginas.
Sempre tem a turma que quer empurrar Alan Moore, Frank Miller, os irmãos Hernandez, Lobo Solitário, Moebius, Akira, Lobo Solitário ou a graphic novels modernas (de Maus a Persépolis) ou super-heróis, nomes e títulos que só fazem sentido para quem já lê quadrinhos, domina a linguagem, tem alguma noção da história do meio, já é leitor entusiasmado.
Não faz sentido recomendar nem Guido Crepax, que tenta construir a própria linguagem, mas já parte de uma base anterior (Mandrake, Príncipe Valente, Flash Gordon etc.). Em entrevistas, Crepax conta que suas primeiras histórias em quadrinhos foram adaptações de filmes, como O homem invisível.
Para atrapalhar, faltam revistas (magazines), tipo a Chiclete com Banana, onde você conta com o interesse do leitor e enfia aqui e ali histórias em quadrinhos, ao lado das tiras e dos textos.
A noção de que o livro deve começar no começo e com alguma força.
Minha impressão é de que as editoras dos medalhões, as casas editoriais lá fora, andam dispensando o primeiro ponto. Money talks, etc.
E as editoras em geral começaram a não se importar com o segundo ponto. Essa impressão é local, e coerente desde 2007.
Não gosto de dizer e não oferecer argumento, prova, pista.
Então vai abaixo a abertura de, Suttree, do Cormac McCarthy. Não só o livro começa ali, apesar de se perder um pouco nos parágrafos seguintes numa prosa descritiva que lembra Stan Lee sonhando com Alan Moore, como tem mais força que os autores nacionais que li ou folheei desde o começo da pandemia.
“Dear friend now in the dusty clockless hours of the town when the streets lie black and steaming in the wake of the watertrucks and now when the drunk and the homeless have washed up in the lee of walls in alleys or abandoned lots and cats go forth highshouldered and lean in the grim perimeters about, now in these sootblacked brick or cobbled doors no soul shall walk save you.”
De repente sou idiota e não percebi o esquema, não captei a onda dos autores e das editoras nacionais.
Ainda penso que o livro quer ser lido e deve ser editado para ser lido, ou seja, não é garantido que o leitor vai atravessar a obra.
Então sigo achando que o começo precisa ser forte, inclusive mais forte que o fim. Porque muita gente esquece do fim e nem todo mundo chega ao fim. Inclusive, é um espanto perene meu que tanta gente abandone livros sem mesmo conferir o fim.
Tenho a fantasia de que livros antigos, de quando não havia cinema, TV, videogame, costumavam gastar as primeiras dez ou trinta páginas tentando convencer o leitor a fugir, a pensar seriamente se vai investir tempo e esforço na leitura daquele volume, pela própria ideia de não haver competição com a leitura, então o autor precisava simular um corredor polonês pra ajudar os leitores.
E isso me leva a pensar que hoje o inverso é melhor com livros e autores novos, que é preciso um começo bom e um texto que tenha a facilidade do Nelson Rodrigues, que você abre ao acaso e quando percebe já está quase no meio do livro.
É caro, quando possível, um editor ajudar o autor a chegar num texto como o do Nelson Rodrigues, mas nunca vi motivo para não ajudar o escritor a colocar força e quem sabe o começo do livro nas primeiras páginas.
Talvez esteja mesmo velho. E por fora. E gira. Quem sabe pinel. Ou completamente datado.
A diferença real entre ficção e não-ficção é que a não-ficção precisa durar na prateleira, então precisa ter o tempo de vida estendido.
Ou seja, a ficção é perecível, porque fresca.
A não-ficção contém conservantes e outros processos que lembram o processamento industrial dos alimentos. No lugar da pré-digestão, o cuidado anal com a forma. No lugar de conservantes, a atenção a detalhes do mundo real, checagem de dados e fatos, além das questões legais.
O livro de poemas pode ser retirado de circulação sem muita perda. Um volume de cálculo perde muito, do custo das erratas ao preço da atualização, fora a má-fama.
Jabá? Pois não.
A revolta das elites, do Kit Lasch, tradução do MVC.
A alma da festa, terceiro volume das Quaresmeiras Roxas, do Alexandre Soares Silva.
Dicta e Contradicta V5, com o meu conto Cartas Etíopes, sobre a tentativa de construir bases liberais em sociedades sem tradição.
Comendo bolacha maria no dia de São Nunca, romance do Manoel Carlos Karam.
Polaris, contém vários dos melhores contos da literatura nacional, segundo a minha mãe.