Vejo o poder do escândalo, a capacidade de manter as tardes ocupadas de tanta gente, e deveria retornar aos autos, não só os de fé, também os Gil Vicente, além de castigos públicos, fogueira e guilhotina.
Mas penso mesmo é na comoção pública pela morte da pequena e fictícia Nell e também na contraparte da vida real, meio século depois, de cartas chegando à imprensa e às autoridades clamando serem de certo estripador de Whitechapel; e entre mil cartas, uma “do inferno” e com restos de um rim humano preservado em algum destilado.
Daí a gente, você e eu, vê autoridades religiosas e comentaristas, essa ordem religiosa secular, tratando a “decisão de não ter filhos” como uma questão moral, talvez por ser um bordão aceitável martelar que os outros são ruins e até maus (ao não fazerem o que esperamos que façam).
Volta e meia alguém faz até a conexão econômica (de falta de perspectiva e falta de dinheiro), esquecendo-se de que “até mesmo” os pobres, ou “principalmente eles”, “viviam tendo filhos”.
(Hoje ainda se diz que movidos por falta de instrução e de proteína, deixando de lado a racionalidade de loteria e título de capitalização: se pelo menos um dos filhos vingar, o futuro dos pais está garantido. Mas naquela época era bem normal moralizar tudo, principalmente a decisão dos pobres, igual se faz hoje com quem prefere livros “hot” à literatura séria que não sobe nem com Cialis. Alan Moore fala há mais de década dos novos tempos vitorianos.)
Então, acho que não pode ou não deve ser a falta de perspectiva nem a falta de recursos que anda fazendo tanta gente a adiar ou desistir de filhos.
Inclusive, tenha um filho ou se lembre da própria infância para reconhecer que cada dia é um escândalo completo em si.
Sim, os comentaristas e as autoridades religiosas não apontam o dedo (com a mesma intensidade) para o mercado do escândalo, talvez por se alimentarem também dele (ao argumentarem em termos morais).
Apontam sempre, é claro, mas naquela condenação geral do mundo, dum vago milenarismo, às vezes travestido num vago delenda secularismo, mas não dizem que a máquina de mostrar escândalos (carrão de jogador; influencer na CPI; careca com ou sem peruca no STF) sacia a dieta materna e paterna, e servem como contraceptivos. Contraceptivos que não são físicos (capote de Vênus) nem químicos (pílula), mas semelhantes aos matemáticos (tabelinha), e ainda muito liberados. Acho que não adianta condernar o usuário. Ainda mais se as autoridades e os comentaristas seguem usando da máquina de mostrar escândalos.
Logo mais recauchutam a piada da TV, de que nossos avós e bisavós não tinham, agora com o celular. Gosto quando insistem que os romancistas e roteiristas do passado não tinham que lidar com o celular para construir tramas etc., como se isso justificasse o retorno ao passado e outras coisas estranhas. Para mim, justifica o inverso, o anacronismo, criar histórias nos anos 1970 com PCs, laptops e celulares, tudo em tamanho tijolo.
Aliás, anacronismo bem-feito:
Agora, falando sério, outras cousas mais ou menos anacrônicas:
Coleção Crepax: Drácula, Frankenstein e Outras Histórias