Lilith em Philip Roth
É menos misticismo que chave-literária, juro. De dezembro de 2022, do Medium.
Nos livros de Roth os protagonistas tendem a relações ambivalentes com as próprias mães, sendo Alexander Portnoy o exemplo maior.
Um tema mais evidente, exemplar no personagem de Mick Sabbath, é a volúpia diante de mulher, quase toda e qualquer mulher voluptuosa e outras que podem se tornar voluptuosas sob o olhar do desejo.
Os estudiosos de Lilith, como o dentista de Jung, Siegmund Hurwitz, reconhecem dois principais aspectos na entidade, o aspecto da mãe-negra, devoradora da própria cria e estranguladora da prole alheia, e a prostituta-sedutora e súcubo que dissipa e arruína os homens.
Agora vem a parte menos sensata: os leitores podem dizer que a mística judaica não adentra a literatura de Roth pela porta da frente e que os livros não tratam diretamente da espiritualidade judaica, nem mesmo como pressuposto ou elemento do cenário, mas a obra do autor parece contida entre esses dois aspectos de Lilith.
A caricatura apressada do protagonista idealizado de Roth seria a do judeu lúbrico, assombrado pela mortalidade e pelo medo de doenças e atormentado pelo desejo sexual e pelas neuroses familiares, caricatura que elenca de Larry David a Woody Allen. Caricatura que ressoa os sinos e as bandeiras do esperado anti-semitismo e do preconceito contra o “judeu”. Aqui cabem todos os relatos de anteontem e da noite anterior, o preconceito e os atos de ódio seguem firmes. Podem espernear à vontade os racistas e os que não se acham tão racistas, desejo e morte são temas principais até em videogame. Talvez inevitáveis em videogame, ao ponto de não precisar de elaboração fictícia (ao contrário de livros e filmes, que disfarçam tudo sob “temas”, enquanto o videogame oferece vidas/continues e missões/ranking).
Roth não trata diretamente de Lilith, parece não dar rosto nem forma à entidade. Antes, parece voltar-se contra os shedim, os gnômicos filhos de Lilith, sejam os tolos de cara alegre, sejam os moralistas e caretas que se sentem incomodados e desconcertados com a obra do autor.
E misoginia já foi uma acusação levada a sério contra os livros, a memória e o valor de Philip Roth, e que volta a ser articulada pela nova geração de shedim.
Ao desancar os shedim, Roth parece ter se voltado para os demônios menores, como se estivesse fazendo um exorcismo menor, como um meio termo ou acordo com as forças maiores, os aspectos de Lilith.
Não se render aos shedim, expô-los em seu ridículo e absurdo e convidar leitores para reconhecer a hipocrisia dos gnomos. Teria sido a forma de Roth “aceitar o destino”? Destino é um termo brega e a expressão aceitar o destino multiplica a breguice. Fado parece um ritmo musical. Sina soa místico demais. Qual palavra é boa? Porque todo mundo parece estar sob a mesma condição de ser atormentado pelo desejo e, por fim, ser devorado pela terra. Deve ter algum nome menos brega para isso. Até “condição” parece jargão médico.
Roth parece um patriarca ocupado com a própria casa e com isso praticando exorcismos menores. E é possível enxergar aí o sentido de certas opiniões que veem nele um autor menor. (E é fácil lembrar como Harry Bloom não parece entusiasmado com a obra de Roth). Ainda assim, sob esta variante: o autor menor que é visto como grande autor heroico, como muitos leitores e apreciadores enxergam. Não há contradição nas duas visões. Nem mesmo se forem falsas.
Algo desse Fla x Flu de se buscar a sentença, o legado ou o reconhecimento público (ou seja, dos outros) de um autor e de sua obra entedia e contamina opiniões. Talvez a grandeza seja questão errada e que não será resolvida com textos, prêmios ou campanhas (seja de reabilitação como de cancelamento). É daquelas questões estranhas ou alheias à obra, porque lidam mais com a recepção do público que com o texto, mas que em alguns casos ilumina a própria obra: Roth está ocupado com algo menor, os shedim, enquanto negocia com algo maior e difícil de recusar, duas faces da grande Lilith, o desejo e a morte.