A subversão real de Alan Moore e Jacen Burrows em Providence
Do Medium, de dezembro de 2018.
Alan Moore lançou uma série de histórias desenhadas por Jacen Burrows baseadas na obra de HP Lovecraft. O gibi Providence, publicado em 12 edições, parece encerrar o ciclo lovecraftiano de Moore e Burrows, que começou com Alan Moore’s The Courtyard e seguiu com a mini-série Neonomicon.
Há muita subversão divertida na ficção de Moore. Uma delas é o cameo do S. T. Joshi, dos mais conhecidos especialistas atuais em Lovecraft, no último número do gibi. Outra, já esperada, é a exploração da repressão sexual e da inversão ou, como se diz hoje, homossexualidade.
Moore apresenta uma explicação plausível para a construção da mitologia de Lovecraft, pela criação de duplos que conversam com o personagem real de Lovecraft e com suas criações. Com isso, acaba às vezes reforçando pro leitor apressado certo mito que o próprio Moore sabe que é falso, o de Lovecraft como nerdão recluso. Era nerdão, mas não era recluso.
Mas a maior subversão é uma tese desenhada na frente do leitor sem que Moore precise dizer uma palavra, sem precisar subir no caixote para pregar.
Moore sabe que Lovecraft nunca construiu uma mitologia unificada, ainda que hoje se fale de um Cthulhu Mythos. No entanto, a história de Providence busca os elementos, fictícios, que dariam a unificação da mitologia.
A tese pode ser antiga e até óbvia, mas ganha no gibi de Moore e Burrows um ar subversivo irresistível: o roteiro perde muito tempo buscando elos comuns entre vários personagens da vida e da obra de Lovecraft, elos que datam da vinda dos puritanos para a América.
Ao fazer isso, Moore constrói um paralelo entre a imigração puritana e a descrição que o personagem Castro faz dos Great Ones no conto The call of Cthulhu:
“They had, indeed, come themselves from the stars, and brought Their images with Them”
(“De fato, Eles vieram das estrelas, e trouxeram com Eles suas Imagens.”)
A subversão está na ideia de que não foi a América que degenerou os ingleses que aqui aportaram, mas a degeneração foi trazida com a imigração inglesa. A cultura dos puritanos (suas Imagens) está na raiz das monstruosidade e abominações que Lovecraft criou. Tese antiga, mas saborosa.
Sem precisar subir no caixote e pregar, Alan Moore subverte a própria ideia de Lovecraft, que deixa claro na sua obra a degeneração como fruto do contato da “civilização” com as raças “inferiores” e seus ídolos pagãos, e ainda traz uma explicação psicológica para o decadentismo do qual Lovecraft foi um herdeiro tardio, mas fiel em toda a sua extensão, do interesse nos sonhos e na fantasia onírica de um lorde Dunsany ao cientificismo aloprado que lembra o de Augusto dos Anjos.
O meta-comentário é esperado desde pelo menos From Hell. Assim como Moore observa a relação do serial killer com o nosso presente e como observou na Liga dos Cavalheiros Extraordinários como estaríamos entrando numa nova cultura vitoriana, o meta-comentário na sua, até agora, trilogia lovecraftiana, é a presença, em forma de metástase, na cultura popular atual do universo imaginado por Lovecraft.
Onde sir William Gull, em From Hell, teria falhado na criação de um feitiço vitoriano para aprisionar o século XX, Lovecraft triunfou postumamente, e sua imaginação guia a cultura pop do século XXI.




Muito bom! Não gostei de "Neonomicon", que abandonei logo no começo. E confesso que a Liga ficar lovecraftiana em "Century" me encheu o saco. Acho divertidas as ligações que o Moore faz com o 'Aleister Crowley' e os Grandes Antigos, mas curto mais os embates da Liga com o Moriarty ou com o James Bond pervertido. Mas vou ler "Providence" depois do seu comentário.